sexta-feira, 23 de março de 2007

Democracia



As vantagens da democracia são
assaz evidentes nas Berlengas.
A liberdade de expressão é aí perfeita,
muito embora a conversa das gaivotas
possa parecer um pouco frívola e gutural.
Mas liberalmente mergulham sem entraves
na liberdade similar dos carapaus.
Melhor só mesmo o caso das Desertas,
onde os lobos-marinhos são poetas
na república do oceano a meditar.

quinta-feira, 22 de março de 2007

O inventário


Disciplinado e atento como sempre, um jovem
duende procedia à meticulosa tarefa de
inventariar os pessegueiros. Dispunha para tal
de um formulário, com vinte e cinco alíneas,
cada uma a preencher expressamente
e na língua dos nativos e na língua dos duendes.

Nelas constavam: a cor, o nome, a espécie, a sombra
(amena, ou frondosa, ou rendilhada, ou) a música
das folhas, o movimento, o lugar, o estado, a origem
das raízes e do tronco, o das flores e dos botões (quando
aplicável), juntamente com a fauna, humana ou
animal, que, fugaz ou permanente, o frequentava.

Nas outras doze alíneas deveria,
por ordem decrescente, descrever
os doze melhores ramos
(anexando um breve esquisso ou aguarela).

Num país de pomares e de colinas
a tarefa prometia a eternidade. Mas eterna
era a paciência do duende, pelo que,
cinco mil cento e quinze pessegueiros
constavam já, perfilados, do inventário.
Parou, pois, o jovem duende, por momentos,
na sombra de um pinheiro ao pé da estrada.

[… aqui se indica o breve sono do duende]

Esta história não tem, eventualmente, um fim
visível. E quer o duende acorde ou quer floresça.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Março, 21

A Primavera pode chegar nas páginas
de um livro – entre sons e rimas, cantando
no emaranhado das folhas, que vão
a pouco e pouco cobrindo o claro manto
da neve que se foi. Pode chegar, é certo,
na capa colorida de um livro de poemas
– mas convém, de qualquer forma, olhar
de vez em quando para a beira da janela
(e ver, possivelmente, cair o céu da tarde
em voo transversal sobre os beirais).

quarta-feira, 14 de março de 2007

Bucólicas (II)

E de súbito, ouve-se tocar um tambor.
À beira do regato, uma nereide extraviada
mergulha no orvalho e saúda a manhã.
País de colinas mansas, quem te esquecerá?

quinta-feira, 8 de março de 2007

Pomar

Este é um poema em forma de trapézio:
os seus lados paralelos desenham uma
geometria de laranjais, obliquamente
atravessada pelos passos de quem passa,
duas linhas de terra, abrindo um chão de ervas
altas e molhadas. No interior, tangente (ou quase)
à linha mais à esquerda, um círculo assinala
a dimensão da queda, num poço com escada
em caracol. Ploc, faz uma pedra no espelho
da água onde a ninfa vem nadar.
A área do trapézio é calculada pelo tempo
que atravessa o laranjal: varia com a chuva,
ou com a memória isósceles de alguns dias
escalenos, na matemática subtil dos ângulos
de alguns versos, com vista para laranjas e pardais.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Caderno

Este é um poema a régua e compasso:
desenha a esquadria de mundos coloridos,
berlindes, caricas, balões a voar.

No céu da infância as nuvens são brinquedos.

A esquadria está repleta de números
espreitando atrás das grades, em fuga acelerada
para o jardim. Bandas de números num coreto
vermelho e um chapéu de chuva azul.

No jardim da infância a chuva é um brinquedo.

No interior das linhas, as letras equilibram-se
num trapézio. Num baloiço de cores. Seguindo
um carreiro de formigas, no balanço.

Nas linhas da infância as formigas são brinquedos.

Devagar aparece um caracol.
O sol da infância é um brinquedo alto.
Aberto e acessível, como um girassol.

Os telhados da infância são brinquedos.
Na esquadria, as casas desabam lentamente,
e sem cair, adormecem a cantar.

domingo, 4 de março de 2007

Blossom


Vejo-te passar, numa nuvem,
e só posso saudar quem vai de viagem.
No interior da noite mais antiga, a que se
abre agora em milhares de estrelas,
inesperadas e quietas, talvez. Deste lado
do dia, a chuva de Março apaga a pouco
e pouco o rasto dos que partem, com
alguns livros na bagagem e a memória
fugaz das flores de cerejeira, por bússola,
talvez. Farewell, amigo, a vida nunca
chega para os livros que há para ler.

quinta-feira, 1 de março de 2007

A passagem das horas

Encostada à amurada da ponte, de costas
para o rio, sorri para a fotografia. Há pouco
a dizer de um enquadramento assim, que
se entende querer servir apenas de horizonte
de viagem, umas férias, talvez, nada de
particularmente artístico ou trabalhado.
E no entanto, com estranha pertinácia,
o sol põe-se todos os dias na fotografia.
Quer dizer, no céu (matinal?) as cores claras
e fixas vão acompanhando as horas, numa
metamorfose subtil que gradualmente pinta
de rosado o canto superior esquerdo da
fotografia. Na combustão da tarde, o próprio rio
ganha matizes insuspeitos; e no fim do dia
a água é já claramente um espelho opaco
em nítido movimento rumo à linha de fuga,
à direita, na fotografia. Só a personagem
permanece imóvel, de costas na amurada,
muito embora uma sombra se insinue ténue,
esbatendo as linhas do casaco azul.

(Em Berlim, Setembro de 2005, sobre o rio Spree)

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